Confucio dizia que o homem que gosta do seu trabalho não trabalha um único dia de sua vida. Sim, trabalhar, ou em latim tripaliare, que vem de tripalio, um antigo instrumento de tortura. Todos os meus trabalhos, de criança até hoje, foram e são feitos com muito amor e uma necessidade soberana de fazer bem feito. Dizem que o perfeccionismo é um defeito grave, mas sempre consigo concluir minhas obrigações com a satisfação de ter feito o melhor.
É por isso que gosto de narrar minhas experiências. Fico atento com a dose da vaidade, que meus melhores amigos dizem ser um natural sentimento humano e, portanto, pertinente a todos nós, mas quero contar mais de 60 anos de vida de trabalho sério. Provavelmente, contarei casos muito simples, mas na essência trazem excelentes lembranças.
Contar por exemplo, dos tempos em que fui borracheiro, num posto de gasolina de beira de estrada, na saída da minha pequena cidade, Pompéu, em Minas Gerais, neste país, onde é comum as crianças terem que trabalhar para sobreviver.
No Posto Jussara, no ano de 1955, eu trabalhava com orgulho e prazer. Seja como frentista, lá, nós dizíamos bombeiro, como lavador de carros ou borracheiro. Conto hoje, a minha atuação como borracheiro. Eu queria ser o melhor borracheiro do mundo! Digo mais, queria exaurir todos os aprendizados que me propiciavam a função de borracheiro.
Com 14 anos de idade eu tinha uma força impressionante e um jeito maior ainda. Aprendi a trocar os grandes pneus traseiros de trator e, enquanto vazio eu – sozinho – conseguia levantá-los junto ao muro e calcular o ponto em que a válvula deveria ficar para colocar o 1/3 de água necessários para estabilizar a máquina.
Deixava tudo pronto e no jeito para acoplar e parafusar no trator com a ajuda do operador quando ele chegasse ao posto para levar a máquina. Eu gostava de mostrar para todos que por ali passassem o jeito que eu descobri para executar sozinho uma tarefa aparentemente tão complexa.
Os remendos de câmara de ar, eu os fazia como um artista: raspava cuidadosamente a borracha, passava a cola e recortava o “remendo” especial. Colocava na chapa quente da máquina própria e passava talco sem perfume por cima. Mantinha-me alerta para esperar os justos dez minutos de cozimento, desligar a máquina, deixar esfriar e retirar a câmara perfeita como saíra de fábrica. Enchia de ar, levava ao tanque cheio de água e comprovava: a peça estava perfeita. Sim, um remendo perfeito. O garoto com exagerada confiança, dizia simplesmente para o dono da câmara: se o senhor me mostrar onde fiz o remendo, o trabalho fica de graça. O senhor não paga pelo conserto! Todos tiveram de pagar, porque nem eu mesmo saberia dizer onde fizera o reparo.
Apareceu pela cidade um humilde motorista desempregado vindo de uma localidade maior, lembro-me apenas que o conhecíamos como Maruco, que me ensinou a fazer manchões. O manchão era feito de pneus velhos recortados, para serem usados como proteção no interior dos pneus que rodavam com algum corte para que ele não “mordesse” a câmara de ar e a furasse.
Com a orientação do forasteiro, mandei fazer uma ferramenta de corte, curva, com dois punhos de madeira nas extremidades, comprei duas facas tipo peixeira bem grandes e, quando não tinha serviço, eu caprichava na confecção dos manchões. Com a nova ferramenta que desenvolvi, desbastava a borracha das câmaras de ar de caminhão, depois completava, com a faca, o acabamento fino para que a peça se ajustasse perfeitamente, sem bordas ou rebarbas, dentro dos pneus.
Era um dinheirinho extra que eu ajuntava para dar presentes à minha mãe em seu aniversário e no natal. Naquele tempo, felizmente, pelo menos no interior, não tínhamos televisão, e não havia o costume de dar presente no dia das mães.
Ainda hoje, recordo de palavras de elogios dos caminhoneiros que me compravam o produto, quando, chegavam também ao exagero de dizer: “dá até dó por uma peça tão bem feita para rodar dentro de um pneu velho.”
Eu guardava o pagamento no bolso, entretanto o que mais me agradava era o prazer de fazer bem feito. Este mesmo orgulho que tenho hoje, com mais de 70 anos ao narrar minhas experiências como trabalhador manual, de mais de meio século atrás.
Comentários
Verly,
Você ficou devendo o relato sobre sua transformação no intelectual que é hoje. Acho que é uma passagem de sua vida que vale a pena divulgar.
No mais, parabéns! Sucinto, informativo e vívido como é próprio das coisas verdadeiramente experimentadas.
Adoro as crônicas do Verly, adoro seus “causos”…continue sempre a nos brindar com suas belas histórias
Vlad, amigo de todas as horas. Vou mandar para o Editor, o texto sobre o meu despertar para a melhoria. Mas ainda estou onge de ser ser um intelectual que valha a pena. Mas, seus elogios são valiosos porque vc. é muito exigente. Muito obrigado por dispor seu precioso tempo em me ler.
Você é “minha leitora”. Com você, eu poderia imitar aquela escritora que o Juca Chaves conta que encontrou a aluninha e a mesma lhe disse:
Professora, comprei seu livro!
E a professora:
Foste tu?
Parabéns, Sebastião Verly. Pelo texto e pelas memórias. Pelo prazer de fazer bem feito. Pela lição nas entrelinhas; criança pode trabalhar, sim. O trabalho engrandece, dignifica o homem. E, por todos os exemplos que tenho, e não são poucos, a mais “grave” consequência do trabalho infantil é o gosto por fazer bem feito e o risco de crescer viciado em trabalho. E se engrandecer disso. Outra consequência “grave” é a de aprender a lidar com dinheiro e com a afetividade; a dividir o que ganha, presentear a mãe em vez de esperar ou exigir da mesma, tenha ou não recursos para tal. Tudo isso é um grande risco, além de adquirir cedo a autonomia e valorizar os estudos.
Apesar de que, como comunista, ter firmado como profissão de fé minha ferrenha posição contra o trabalho infantil, respeito sua opinião.
No momento quero agradecer a oportunidade de ter como leitora, uma escritora consagrada.
Lembro-me quando minha sobrinha Renilda desenhou uma capa de seus livros há quase trinta anos quando ela me disse da qualidade de sua literatura e seu gosto pela beleza da lingua portuguesa.
Muito obrigado. Sempre que puder emita sua opinião.
Melhor seria se vc. também contribuisse para este portal que promete muito. Eu fiz meu nome aqui.
Além da foto moderna pois naquele tempo tudo era feito no muque mesmo, quero retificar só um pequeno detalhe: “Com a grande ferramenta, desbastava a borracha dos pneus, fazia mais e especialmente com os pneus os maiores, 900 x 20, até 1.100 x 20, depois completava, com a faca, o acabamento fino”. Ou seja, desbastava a borracha dos peneus e não de câmara de ar.