Realmente não sei mais o que fazer. Preciso sair, preciso ver o mundo. As conversas não mudam de tom, ficam no mesmo tom e eu sem perspectivas de sair. Porque não dão o braço a torcer, porque não me libertam? Talvez porque eu já tenha saído antes. Me lembro que saí. Lembro da sensação de passar por aquela porta de ferro, ver as árvores lá fora, os carros passando, gente. A primeira respirada, do ar da liberdade enchendo os pulmões. Saí sim, posso me lembrar. Mas devo ser deveras perigoso, cá estou eu de volta. Num tempo que não passa, será que me prenderão de vez? Será que pensar é tão perigoso? Sentir a intensidade do mundo em seu peito? Adentrar uma supra-realidade, com as asas de um anjo, que se eleva acima da mediocridade? Sim. Isto é muito perigoso, os sãos não estão prontos para isto. Sua ciência, suas normas não enquadram estes seres, como eu. Ou nos encaixamos, ou…
Não sei bem como foi, mas lembro quando fui enjaulado pela primeira vez… Lembro não, sinto. Foi depois daquele fim de semana no sítio, não tinha muito tempo que eu havia chegado da fatídica viagem de Juiz de Fora. Minha casa se tornou um cárcere privado, eu não suportava mais ficar ali. Precisava, queria, ansiava por sair, encontrar todo o mundo que sussurrava em meus ouvidos. As vozes tinham que se corporificar. E na ânsia por sair, queria passar pelo que fosse. Eu podia sair mesmo pela varanda, plainaria do oitavo andar, até a rua. Era dela que eu precisava, da rua, do mar de gente que passa por ela.
Me impediam de sair. Me diziam que as vozes não existiam. Tinham medo da palavra, possivelmente, mas queriam dizer que eu estava louco. Via o desespero em seus olhos. Via, mas não podia fazê-los entender. Eles tampouco buscavam. Neste conflito explosivo, a solução parecia não existir. Os dias passavam e eu não agüentava mais, nem eles, minha família. Eram meus inimigos, menos meu irmão, Léo. Ele estava acima disto. Mas a guerra era declarada, não aceitava mais o autoritarismo que me impunham. Precisava sair, como não entendiam isto? Como não entendem?
Neste meio, veio a solução. Me fizeram, sabe-se lá como, entrar em uma ambulância. Luzes, enfermeiros, de branco, alguém me acompanhava. Eu precisava fugir, era a única brecha. Precisava de um plano. Para onde me levariam? O que fariam comigo? Como podiam ser coniventes com tudo aquilo? Logo aqueles que diziam que mais me amavam. Mas eu não precisava mais deles, nem de Sandra, nem de Tatiana. Nem de minha namorada. Precisava embarcar dentro de mim, era um Eu pleno, uma espécie de super-homem nietszchiano.
Desembarcaram-me em um lugar soturno. Não era um hospital, eu tinha certeza. Eu resistia, ou tentava, enquanto me encaminhavam para uma sala. Não sei se estava sozinho, eu e os três enfermeiros, ou se alguém da minha família me acompanhou. Quando chegamos nesta sala, minha plenitude explodiu. Era a hora! Inflei o peito e enfiei um soco no primeiro enfermeiro. Vieram os outros. Soquei, mordi, prendi. Apanhei, como apanhei! Aqueles covardes, malditos de branco! Um me pegou por trás, me pegou pelo pescoço, num mata-leão. Não ainda não tinham me dominado. Tentei bater mais. Urrei, berrei. Filhos-da-puta! O maldito apertava meu pescoço, a ponto de a voz não sair mais. Mas ainda não estava dominado, eu conseguiria acabar com os três. O outro pegou meu braço. Me sentaram numa cadeira. Amarraram meus braços nela. Os dois. E o maldito apertando meu pescoço. Mas eu respirava, ainda tinha vida. Sinto o aperto no pescoço agora, como se aquele braço nunca mais cessasse de me violentar.
Me deram uma injeção. E o desgramado apertando ainda. Eu ficava sem ar. Vieram com uma camisa-de-força. Me enfiaram nela. E o cara apertando. Eu tive que ceder. Parei de berrar. Pedi, implorei para me soltar. O cara apertando. Eu não tinha mais voz. O cara apertando. Pode me soltar, não consigo mais me mover. O cara aperta ainda mais. Me solta, vou apagar. Mais um aperto. Eu quero minha mãe, minha família, quem deixou você fazer isso comigo? Apertou mais um pouco. Você não percebe que nem falar consigo mais? O último aperto… Quase apaguei.
Mas quando recuperei o fôlego, mesmo amarrado na cadeira, preso numa camisa-de-força, eu voltei a gritar. Estas injeções não funcionam em mim! Vocês vão ver comigo, covardes! Venham um de cada vez, acabo com vocês, malditos! Eles iam embora, eu ficava naquele quarto escuro, preso. Gritava, berrava. Cadê todo mundo? Alguém me solta! Fui espancado! Isto é um absurdo! Não sou louco! Socooooorrrooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo…
Não adiantava, minha garganta ainda me sufocava, as palavras doíam para saírem. E os berros não tinham resultados. Ninguém vinha. Talvez ninguém viria mais. Só. Nem as vozes estavam ali para me ajudar. E a sensação de claustro, preso pelos meus próprios braços, que pela camisa-de-força me abraçavam. Isto, meus próprios braços me prendiam, e eu não me mexia. E o mundo foi pesando. A voz cessou.
Apaguei.
Comentários
Fui visitar minha tia no Santa Maria no dia seguinte da sua internação.
Dai perguntei do menino de cachinhos no cabelo.
Ele só falou que um menino mais ou menos da minha idade bravo tinha entrado no dia anterior. Será que era você?
Meu querido neto, desta vez não há comentário..Beijo grande, Vó