Já escrevi um artigo sobre adultério. Desta vez quero usar uma expressão mais neutra. Aquilo que está adulterado foi corrompido, desvirtuado. É uma palavra com significado negativo. A palavra traição ou infidelidade também está carregada de censura moral. Neste momento prefiro esta expressão mais neutra por que a ética envolvida nesta questão é polêmica, delicada, difícil de ser categorizada de modo contundente ou definitivo.
Na vida de todos nós existem situações que são difíceis de lidar. Por mais que nos preparemos, raramente estamos prontos quando a situação entra de fato em nossa vida. A morte de pessoas queridas; doenças graves; o roubo vindo de parentes ou pessoas muito amigas; o término de uma relação amorosa de longa duração seja namoro ou casamento; a ocorrência de relações eróticas fora do namoro ou casamento – todas estas situações quase sempre são chocantes, nos abalam de modo mais ou menos intenso e a maioria de nós não acha fácil lidar com elas.
Que eu tenha conhecimento as relações eróticas fora da relação principal sempre existiram e existem em todas as sociedades do passado ou do presente. Nem a lei religiosa, nem a lei civil, nem as punições severas jamais conseguiram extingui-las.
Como a maioria das sociedades de que temos conhecimento são ou foram machistas, há milênios este vinha sendo um comportamento predominantemente masculino, mas jamais exclusivo dos homens. As mulheres eram violentamente punidas, mas nem por isto esta conduta desapareceu.
Nas sociedades ocidentais, talvez desde um século ou muitas décadas, ocorreu um processo de libertação das mulheres, de modo que cada vez mais frequentemente também as mulheres sentem-se mais livres para estabelecerem relações eróticas fora da relação principal.
Como para a cultura machista as relações eróticas fora da relação principal sempre foram consideradas pelos homens um direito natural – exclusivo dos homens – existe a tendência de que os homens tenham menos sentimento de culpa diante do fato.
Além disto é rara entre as mulheres uma conduta intensamente promíscua. As mulheres são mais seletivas, criteriosas e quase sempre tendem a estabelecer relações com maior ou menor medida de envolvimento afetivo.
Já pude observar, ao longo de décadas, que o egoísmo humano é supra sexual. Aquilo que o outro faz, que contraria os nossos interesses, quase sempre nos parece mais grave. Se eu tive no passado ou tenho no presente a mesma conduta, olho para os meus atos com mais compreensão e benevolência. É muito mais fácil eu me perdoar de coração do que ser capaz de perdoar ao outro a mesma conduta.
A capacidade de perdoar de coração o fato de que meu cônjuge tenha tido relações eróticas com outra pessoa é rara, muito rara. Muitas relações prosseguem, apesar disto. Envenenadas. Pode haver um esfriamento erótico ou afetivo involuntário. Ou atitudes punitivas voluntárias. O cônjuge que se sente vítima pode se vingar de variadas maneiras, inclusive tendo relações eróticas com alguém por pura vingança. E pode manter absoluto segredo do fato, saboreando em silêncio o relativo prazer de ter se vingado. Mas em geral esta vingança, não tem, a capacidade de restabelecer a confiança que antes existia ou a leveza da relação afetiva. Quase sempre, relações paralelas fora da relação principal são pesos difíceis de carregar, mesmo que recíprocas. Nunca impossíveis. Mas poucos casais conseguem lidar com o fato sem ressentimentos, sem retaliações, sem sentirem-se mais inseguros daí por diante.
Por outro lado existem pessoas, homens e mulheres, que conseguem manter relações eróticas fora da relação principal, de curta ou de longa duração, sem que jamais o fato venha a público, seja descoberto. Não falo aqui daquilo que é sabido mas nunca comentado. Falo daquilo que não é conhecido nem é motivo de fortes suspeitas ou desconfiança. Existem casos assim. Por estranho que possa parecer, nestes casos o efeito negativo pode vir a ser pequeno. Não houve quebra de confiança explícita. Não houve a certeza do fato ou a forte suspeita. O cônjuge que mantém a relação paralela com sigilo absoluto, ou que tenha tido episódios deste tipo com mais de uma pessoa ao longo da vida pode ter mantido a mesma qualidade afetiva dentro da relação principal ou mesmo ter se tornado mais alegre, feliz e carinhoso com quem tem a relação principal.
É chocante mas é verdade. É possível. Há casos assim. Contar ou não contar, eis a questão. Não se trata de cinismo. Não advogo aqui a arte de bem mentir. Narro fatos. Quem pode julgá-los não sei. Eu não. Já se foi o tempo no qual eu acreditava saber o que é certo e errado em cada situação da vida. A vida é maior do que isto, complexa. Que os moralistas venham com suas sentenças e ameaças. Eles mesmos são transgressores. Ninguém vive sem errar.
Há casos em que uma pessoa há anos vem desenvolvendo uma doença grave, gravíssima, assintomática. Ninguém sabe. De repente vem o diagnóstico médico, o paciente fica sabendo, se apavora, piora rapidamente e morre. Saber do fato foi útil?
Conheço mulheres que foram estupradas pelo marido e engravidaram. Não havia o menor amor entre o casal. Um estupro cheio de ódio por um marido com raiva de não ser mais amado e desejado pela esposa. A criança cresceu e se desenvolve normalmente. Será útil para ela saber como foi gerada? Será útil ela saber que é fruto de um estupro nascido do ódio?
Seria bom se soubéssemos de modo seguro e infalível o que é certo e errado em cada situação de vida. Será que devemos contar todos os nossos pensamentos e desejos para o nosso cônjuge? Seria isto a verdadeira honestidade, sinceridade, transparência? Você ficaria feliz em saber que todos os teus pensamentos, sentimentos e atos são percebidos e conhecidos pelo teu cônjuge, sem que você possa impedir? Termino com uma citação do autor Kyriacos Markides: ‘Tenham cuidado. A verdade é fogo e, algumas vezes, não temos o direito de queimar nossos semelhantes porque achamos que temos de dizer a verdade’.