Fernando, o cidadão da cerveja de ontem, já esperava para ouvir sobre a velha Lagoinha, conforme sugeriu da vez anterior.
Pediu a bôua, sentou-se e se pôs a falar.
Não dá para falar, viu. Ninguém vai acreditar.
A Lagoinha era o que há hoje e muitas vezes mais pela Praça Vaz de Melo e adjacências. A Vaz de Melo era única. O grande compositor Rômulo Paes fez aquela música: “Não há entre nós um paralelo, eu aqui nas Vaz de Melo e ela tão longe de mim.” A Praça Vaz de Melo ficava onde hoje se concretam os elevados que se bifurcam, trifurcam, reenfurcam … só podia ter esse nome, Complexo da Lagoinha, coitada dela!, o espaço inferior é só fuligem e barulho de buzina, mais nenhuma marca do passado.
Para falar da Lagoinha tem de começar pela Praça Vaz de Melo, amostra geral de uma cidade paupérrima. Prostitutas de tez amarelada, aparentemente adoecidas pela labuta insana, alimentação deficiente, maus tratos pelos homens e pelas concorrentes. Os quartinhos alugados para entrar e sair em cortiços eram tristes, penicos eram usados para as necessidades, água só numa jarra ou balde, banho só de bacia.
Ali tinha de tudo. As fotocópias que antecederam as reprografias da Xerox eram as mais baratas e ofereciam a qualidade necessária. Relojoarias de consertos também vendiam relógios baratos. Relógios de corda, únicos que existiam na época, encontravam ali o conserto na hora ou poderia pegar e pagar depois. Sem nenhum documento. A palavra do relojoeiro valia. Do outro lado da Praça as barracas de roupas, sapatos e acessórios se misturavam ao ponto de não se saber qual era qual. Algumas vendiam panelas, talheres e utensílios de cozinha e de casa. Havia uma com artigos de umbanda, defumadores, perfumes baratos e sabonetes.
Camelôs faturavam com a famosa pomada japonesa e as camisinhas coloridas importadas, as duas oferecidas com fala sussurrante para não constranger os fregueses. Uma imunda cobertura de telas de chapas metálicas, oferecia aquele divertimento de carrinhos elétricos em miniatura, 30 cm de comprimento e 15 de largura, simulando os modelos coloridos da época. Trafegavam sobre uma extensa mesa onde as “ruas” eram em alto relevo, o volante ficava do lado de fora e o “motorista” ficava em pé. Meninos vendiam garrafa para comprar as fichas e vinham de longe a pé para experimentar as emoções do volante, da alavanca de marcha na coluna da direção, que tinha também a marcha-à-ré, o pedal do acelerador abaixo, era um bom simulador de direção. Quando batiam em determinados pontos das laterais desligavam e o jogador perdia a vez, os encarregados do jogo anunciavam que aquilo era bom para quem queria tirar carteira de motorista.
Original era o banho a 5 cruzeiros, num quarto imundo de subsolo, onde as pessoas tomavam banho e se enxugavam com jornal ou papel de embrulho que molhados ficavam aos montes no meio de 36 chuveiros, sem separações físicas e que ficavam distantes um do ouro em meio metro.
Fez uma pausa, mais um pequeno trago e pergunta: “Tá dando para você entender, Fernando?
Ali atrás da Praça tinha um depósito de toras de madeira. Certa feita, nas chuvas de 1959-60, toras de quase dois metros de circunferência foram levadas na correnteza da enchente do Rio Arrudas. Foram parar lá pela altura da Pompéia. Uma loucura! Essa enchente foi demais. Até surgiu uma anedota que foi com ela que criaram o Oceano Atlântico!
O Posto Nocchi, do velho Vitorino e seus filhos Rodrigo e Roberto com a bandeira da Shell fazia o contraponto com um negócio mais avançado para o ambiente. Formava um triângulo, no cruzamento da Avenida Antônio Carlos com Praça Vaz de Melo. A Antônio Carlos já apresentava melhores condições e tinha Banco Comércio Industria de Minas Gerais no número 90, esquina com Rua Araxá. Numa ponta da Antônio Carlos rumo à Rua Diamantina, estavam oficinas mecânicas da melhor reputação como a retífica de motores Carlito e Batista, do Carlito Correia de Araújo, a Capotaria do José Albino Brandão. E na maior parte do quarteirão, o maior ferro velho da época, do velho Galinari, seguido pelos seus filhos tendo o Orlando à frente. Mas ali mais na frente, na esquina com a rua Adalberto Ferraz, onde hoje é apenas um acesso de viaduto, havia o Posto Peixe Vivo, onde um anúncio multicolorido de gás neon piscava com o peixe pulando e caindo na água. Quando eu chegava de ônibus do interior pela Antônio Carlos e via aquele luminoso era um êxtase. Até hoje aquele peixe ainda pula na minha memória. O nome celebrava a cantiga popular projetada por JK.
No número 81 da Avenida Antônio Carlos, a elegante Amélia Paniquar mantinha uma pensão de mulheres e casa de encontro com jovens e lindas prostitutas que cobravam os olhos da cara, ficando inacessíveis para os pobres bancários como eu e comerciários da região.
Mais adiante, o Bar do Marinho e Carlito, onde, aos sábados comíamos a melhor feijoada, eu ia muitas vezes lá deliciar a feijoada e a pimenta malagueta mais brava da face da terra, diziam que era aperitivo de dragão. Depois vinha a loja Minas Diesel, concessionária Mercedes Benz e Toyota, gerenciada pelo velho e simpático alemão Hugo José Gurgenheinn. Do lado direito, no número 100, estava sua concorrente, a moderna Minasmáquinas, onde mourejava um homem da mais alta qualidade o Altino Eto. A Minasmáquinas estava ligada ao Moacir Carvalho de Oliveira dono da Mila que ficava no número 1880 da Antônio Carlos, na Cachoeirinha. Atílio Roque Magnago era o lorde com paletós importados esbaforando seu cachimbo dentro da loja. Fez sucesso ali, a funcionária argentina Margarita Morales. Ela solicitava aos colegas para acompanharem-na à farmácia onde um empregado fazia injeções na sua popa como ela exigia. Duas coxas lindas, comentavam os acompanhantes.
Mais adiante a fábrica de Grapete, prédio em estilo moderno, estrutura de concreto ornamental, “Quem bebe Grapete repete, Grapete é gostoso demais”, e dos refrigerantes Del Rei. O Atlético chegou a ter um bom zagueiro com esse nome, Grapete.
A Avenida Nossa Senhora de Fátima era a Rua Mauá, onde prostitutas se misturavam com a marginalidade.
As casas de mulheres iam da Rua Diamantina, até a Avenida Pedro II, muitas na Rua Bonfim. Mais adiante, na Rua Rutilo localizava outro “Rendevous” famoso. Só para ricos. As mulheres da Rua Rutilo, costumavam se deslocar até o Clube Fluminense na Esquina da Antônio Carlos para aliciar “fregueses”.
Sem nenhum recurso legal para sua preservação, a Rua Além Paraíba se salvava com o Banco de Crédito Real de Minas Gerais, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição e muitas casas antigas. Algumas ainda restam.
Mais adiante já de frente para a Avenida Pedro II, ficava a fartura da Feira dos Produtores onde se encontrava, Verduras, Frutas, Hortaliças, carnes e peixes. Com a construção do “Complexo Viadútico” a feira foi para a Cidade Nova, bairro crescente na época, na avenida Cristiano Machado.
Faltou falar do Cine São Geraldo, na avenida do Contorno em frente à Rodoviária, onde a fita arrebentava sempre, a luz acendia e pegava de surpresa muitos cassais em posições constrangedoras. Era um cinema popular, onde passavam muitos filmes de faroeste e aventura. Já nos anos 70, quando a ditadura militar que impunha uma forte censura político-social decidiu liberar e incentivar a pornografia surgiu no lugar do Cine Mauá, o Cine Lafaiete, que ficava colado na Feira dos Produtores, e dava fundos para o São Geraldo. Era uma casa de exibição modernizada, totalmente especializada nos novos filmes pornográficos da década de 70. Como se tratava de uma novidade, eu até tive três amigos que estudavam sociologia e pedagogia na UFMG que iam para ali se divertir, segundo eles com as reações da plateia. Nas cenas em que a atriz principal aparecia com as partes proeminentes expostas a plateia totalmente masculina se exaltava se contorcendo nas cadeiras, esmurrando o ar e gritando: “Bôua, Bôua, Gostosa!”
Faltou falar do mau cheiro do Rio Arrudas e das Passagens de Nível dos trens da Rede Ferroviária e seus inúmeros acidentes. Do Morel, Movimento pela Retirada dos Trilhos da Lagoinha liderada pelo padre Viegas.
Olha aqui Fernando, vou lembrar mais coisas especialmente da vida noturna da região e, não prometo o dia, mas volto a te contar da Lagoinha.
Comentários
Verly, parabéns pelo trabalho genial nesta crônica. Com meus 77 anos sei também o que encontrava SÓ na Lagoinha.
Verly, mais uma vez, mostrando a sua maestria nas crônicas.
Esta a BH que não pode ser esquecida!
E ainda bem que ele a registra aqui!