Volto à cidade para pesquisar um pouco sobre sua história. A fama continua: “o povo daqui é muito bravo. Cada dia mais. O pessoal daqui não leva desaforo para casa. Criou fama…” Pergunto sobre os casos mais marcantes da Cidade.
Ninguém mais sabe do Roquinho Muié, ou quem poderia saber prefere não tocar no assunto. Outro assunto que marcou época foi a fuga do Tenente Alair com a Elba filha do Coletor. Agora o filho do Tenente vai se casar com uma menina que nasceu aqui. Não encontrei uma única pessoa que se lembra do Prefeito Juju que distribuiu as terras da Prefeitura para quem requeresse. E o velho Lilico. De quem é hoje a sua enorme fazenda? E sobre o pai do guerrilheiro, o velho dono de 2.000 alqueires de terra cuja propriedade invadia o munícipio vizinho. A conversa vai se estendendo. Tomamos mais uma xícara do café que começa a esfriar.
Conduzi o assunto para onde queria chegar. Lembrei da febre dos garimpos de cristais. Começamos por relembrar a origem de tudo. O velho sogrão tomava dinheiro a baixos juros, pagos religiosamente todo dia 30 de cada mês. Sua renda além de uns negocinhos com gado curraleiro e da plantação de raízes, mandioca, bata doce, batatinha inglesa, cará e a menina dos olhos, o raro mangarito.
Tudo era vendido aos comerciantes da cidade e um pouco aos particulares que tinham acesso a sua fazenda. E a vida era aquele marasmo de todo fazendeiro.
Agora entramos no assunto principal. “Um dia um jovem inteligente de família conceituada, morador na cidade vizinha, chegou lá e falou: – O senhor conhece minha família e sabe que sou merecedor de crédito e confiança. Vim aqui propor um negócio pra nós dois ficar ricos, muito ricos! Vamos garimpar cristal nas suas terras. Meu irmão leu sobre o assunto e descobriu que aqui na cidade a maior jazida está nas suas terras.”
Não tem fiscalização, não paga imposto, igual ainda é hoje, só tem que tapar buracos para não cair os animais. Recompor a vegetação só se for pra criar gado.
O velho agricultor chamou os filhos Toca e Zeca e contou a proposta. Os dois não deram crédito ao Bernardino, o cara que veio propor garimpar cristal. Já os meninos do segundo casamento, parece que já nasceram virados para a lua. Na mesma hora, foram lá fora conhecer as sondas e pegaram enxada e uma cabaça com água e fizeram experiências ali mesmo na frente da casa. Batata! A sonda de 3 metros de comprimento enfiou na terra facilmente até 2 metros quando topou com uma pedra e não furou mais nada. Era o tal cristal que o Bernardino dizia.
Fizeram a primeira cava e a primeira cata ainda improvisada. As ferramentas, além da sonda, para localizar os veios do cristal, eram picaretas, chibancas, pás, naquela época se dizia chaula, enxadões e enxadas.
O contrato foi verbal. Garimpo à meia. Todas as despesas por conta do contratado. Bernardino conhecia a Capital e lá descobriu o único lugar da comercialização dos cristais. Um cara comprava cristais pagava à vista e até adiantou dinheiro para iniciarem a lavra.
Surgiam os primeiros sinais da exploração do cristal de quartzo. Mais do que o ouro, o cristal começava a despontar como uma fantástica fonte de riquezas. Uma pedra simples que na sua forma natural, mais parece gelo.
Em pouco tempo, o velho plantador de cará, mandioca, batata doce e inglesa, único produtor de mangarito, já esquecia as antigas lidas e cuidava mais de dinheiro.
Mais do que os filhos do primeiro casamento, perto dele estavam os forasteiros, Bernardino e seu irmão de alta confiança. Os pequenos e as meninas começaram a aprender a ser gente rica. Bons rapazes e boas meninas da cidade já jogavam olhares e declarações para a família toda.
Ficaram muito ricos. Especialmente os garotos que já trajavam diferente com roupas e calçados de estilos vaqueiros. Os outros dois continuaram a plantar mangarito e ainda tomavam dinheiro a juros baixos, a dívida permanecia enquanto o credor quisesse. O filho de um deles, por muitos anos, foi motorista de praça, com um velho Chevrolet 40. Não tinha ambição nenhuma.
Aqui o garimpo encerra suas atividades e os meninos, como os chamava o velho, estavam podres de ricos, desfilavam em carros importados do último tipo. O velho era considerado um dos três homens mais ricos da cidade.
Aqui começa nossa história principal. Foi nessa época, lá pelo início dos anos 1950, que apareceram na cidade, usando automóvel e uma ótima lábia, dois forasteiros. Um chegou a apresentar documentos com o nome de Domingos Orlando e se dizia candidato a Deputado Estadual pelo PSD e o outro nem lhe foi perguntado, disse apenas que era candidato a Senador.
Deram entrada no principal hotel da pequena cidade que não pedia nem o nome dos hóspedes. Pediram que o quarto não fosse arrumado nos dias em que ali estivessem, pois tinham assuntos políticos para tratar. Chegaram com uma maquininha bem embalada, importada dos Estados Unidos e tinham endereço e informação dos dois jovens e ricos herdeiros da fortuna do cristal.
Os dois foram convidados com o maior sigilo e tato ao pequeno quarto do hotel e assistiram à impressão de notas falsas, as laranjadinhas de 1.000 cruzeiros, ou um conto de réis. Ficaram encantados! Seriam os homens mais ricos do Brasil. Deram um pequeno sinal de dez mil cruzeiros exigidos pelos forasteiros e foram em busca do resto da grana com o pai. Velho experiente, o dono dos garimpos os alertou da farsa e exigiu que eles recuperassem a entrada que deram como sinal do negócio.
Como eles demoraram, os forasteiros desconfiaram que algo havia dado errado, pagaram a hospedagem e tomaram a estrada às pressas na direção da capital.
Na mesma hora, os dois novos ricaços foram ao quartel pegaram os dois soldados mais o sargento, armaram os cunhados com revólveres e zarparam pela estrada poeirenta. Lá, depois de terem passado pela primeira cidade, alcançaram os dois homens que não esboçaram qualquer reação.
Os revólveres dispararam todos ao mesmo tempo. Os corpos ensanguentados a máquina destruída e o dinheiro nos bolsos das calças foram recolhidos.
Os corpos foram levados para Belo Horizonte, com a ajuda do sargento que comandava o destacamento local que recebeu uma boa grana para forjar uma versão de resistência à prisão e ação da força policial em legítima defesa. E mais uma vez uma pedra foi colocada em cima do episódio que não teve nenhuma divulgação. Na cidade não se falou mais nisso.
Entrevistei para este conto, o único cunhado ainda vivo dos então rapazes. Bem velhinho, sorriu ao contar que os dois outros cunhados tremiam feito vara verde ao segurar o revólver. Atiraram de medo. Ele não. O pai era homem bravo e “nos acordava, dando tiros debaixo da cama”, riu.
Com um pouco de ar sério, pegou meu notebook com mãos trêmulas e falou com uma dose de ameaça mesclada de ironia. Esquece que falou comigo, não ponha nome nem sobrenome de ninguém da família, para não criar mais um crime que ninguém nunca ouviu falar.
Em breve, meu informante com mais de 85 anos, partirá e a história não registrará mais aquele episódio na cidade que ninguém nunca ouviu falar. Será que este crime houve mesmo, ou é pura fantasia de dois velhos à procura de contar papo e ganhar a atenção dos mais jovens? Quem gostou do conto que aumente um ponto!
Comentários
Mais um delicioso “causo” de nossos rincões pompeanos.
Que bom, Verly, que esteja garimpando estas estórias, que não podem se perder no olvido dos tempestuosos tempos modernos.
Minas se faz deste tipo de vivência também.
Parabéns!
Na realidade os coronéis atuam até hoje, criam uma influência nos órgãos públicos emperrados, através de seu poder econômico, além de controlar a midia. Mesmo nas redes sociais as pessoas ficam intimidadas, têm medo de perder o emprego e de serem consideradas loucas, afinal como dizia Ariano Suassuna, “São os doidos que dizem a verdade sobre o mundo”. Parabéns ao autor e ao site por começarem a levantar essa penumbra de nossa história.
Sugiro ao autor reavivar as histórias dos coronéis de Minas Gerais. Na região do Suaçuí atuaram até 20 anos atrás. Há também o famoso coronel Bimbim de Aimorés e o temido Coronel Georgino do Norte de Minas.
Muito bom, se fosse nos Estados Unidos ia virar filme de Hollywood. Cadê nossos cineastas? Só essa parte da história de ter levado os corpos para Belo Horizonte é que não dá pra acreditar, acho que eles jogaram para os urubus. Mas e o carro? O que foi feito com ele? Alguém poderia esclarecer? Enquando tem personagens vivos tudo é possível.