Há algum tempo, em certo folheto da missa católica, muito utilizado na Região Sudeste do Brasil, encontrei uma expressão bastante repetida, mas, sem dúvida, equivocada. Trata-se da expressão “nações indígenas”, que confunde “povo” com “Estado” ou “nação”, o que não esconde uma visão ideologizada da realidade humana.
Se pensamos, por exemplo, nas comunidades ciganas, a questão começa a se esclarecer. De origem incerta – possivelmente da antiga Índia -, os Rom, ciganos, se espalharam pela Europa Central, a ponto de emprestarem seu nome à atual Romênia. Sua rica cultura tem a marca inconfundível do nomadismo, vagando há séculos por territórios que não lhes pertencem. Assim, mesmo possuindo cultura própria, idioma próprio, costumes e valores próprios, os ciganos não constituem nação nem Estado propriamente ditos.
Em sua magnífica “Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo”, MEC, 1967, o padre e sociólogo Fernando Bastos Ávila, trata do tema com desenvoltura no verbete “Estado”. Os Estados modernos – diz o Autor – “gozam da prerrogativa da soberania que eles exercem sobre um povo que ocupa determinado território. A noção de Estado não se identifica assim com a noção de povo. Estado é um conceito político, povo é um conceito demográfico-sociológico, isto é, que se situa a cavaleiro sobre os limites da demografia e da sociologia”.
É assim que o povo “é a base humana do Estado ou nação, possuindo do ponto de vista demográfico, um determinado efetivo populacional, com uma determinada estrutura de gêneros, idades, etnias, com uma determinada densidade na ocupação do território, com uma determinada dinâmica de expansão vegetativa e de mobilidade geográfica” (Ibidem, p. 202-203).
Do ponto de vista sociológico – prossegue Ávila -, o povo “é o repositório dos recursos humanos do Estado, onde palpitam as aspirações e ideais coletivos, fonte de todos os dinamismos nacionais que se configuram numa personalidade de base, mais ou menos definida”. Esta definição se aplica aos grupos indígenas que habitavam o hinterland brasileiro à época da chegada dos primeiros europeus. Sem a noção de “propriedade” da terra, tais agrupamentos indígenas, vivendo ainda, em geral, o período da pedra lascada, vagavam pelo território em atividades de coleta, caça e pesca, às vezes incluindo atividades agrícolas extremamente primitivas. E essas populações mudavam rapidamente de território quando os recursos locais começavam a escassear.
Já o conceito de “nação”, diz o mesmo Autor, “se distingue tanto do conceito de povo como do de Estado. É um conceito de natureza predominantemente sociológica, implicando, contudo, conotações de caráter organizacional, administrativo e político”. O padre Ávila cita, como exemplo, os israelitas que, “durante todo o tempo da Diáspora, isto é, antes da constituição do Estado de Israel [1948], foram um povo sem ser uma nação. Por outro lado, a Bélgica, a Suíça, o Canadá são nações que compreendem dois ou mais povos, ao menos no sentido demográfico do termo”.
Daí, chegamos à conclusão de que uma nação “é o conjunto estruturado de instituições, entre as quais o Estado, nas quais o povo se organiza, ou mais exatamente, é o povo enquanto organizado no conjunto de instituições pelas quais ele tende à realização de seus objetivos e aspirações”.
Um leitor distraído, ao receber o citado folheto de missa, poderia ser levado ao equívoco de pensar que a Igreja Católica no Brasil vê nossos irmãos indígenas como uma “nação” separada do restante do povo. E isto não é verdade.
Comentários
Gostei muito do artigo e o achei esclarecedor, mas ficou uma dúvida: os índios brasileiros não se encontravam na idade da pedra polida? Creio que a pedra lascada foi apenas uma maneira exagerada do autor se referir ao tema.