A Igreja pacificadora

Publicado por Antonio Carlos Santini 10 de janeiro de 2017

Igreja pacificadora
Muitas vezes acusada de estimular conflitos e dividir culturas, a Igreja atravessou os séculos trabalhando pela paz, arbitrando conflitos e formando para a humanidade admiráveis construtores da Paz.

Em 1978, Argentina e Chile estiveram muito próximos de um conflito armado, motivado pela discussão em torno da soberania do Estreito de Beagle, na Terra do Fogo, área de importância estratégica para a navegação entre os oceanos Atlântico e Pacífico. A tensão chegou a um ponto crítico na noite de 21 de dezembro, quando o exército argentino se preparava para ocupar as ilhas do estreito.

Poucas horas antes da invasão, a Junta Militar argentina aceitou a mediação pessoal do Papa João Paulo II, que subiu à cátedra de Pedro apenas dois meses antes, e a ação foi suspensa. As divergências seriam logo superadas, ficando o Chile com as ilhas Nueva, Picton e Lennox, além de controlar o Canal de Drake, cabendo à Argentina o controle do mar territorial Atlântico e seus recursos de pesca e petróleo.

João Paulo II conduziu os dois lados ao diálogo, exortando-os as duas nações católicas ao entendimento e afirmando: “O diálogo não prejudica os direitos e amplia o campo das possibilidades razoáveis, para honra de todos quantos têm a força e o bom senso de o continuar incansavelmente contra todos os obstáculos”.

Santos que constroem pontes

Em 1º de outubro de 1999, atendendo ao pedido conjunto da Igreja Luterana e dos bispos católicos da Escandinávia, João Paulo II proclamava Santa Brígida da Suécia (1302-1373), como patrona da Europa. Exemplo de ação pela unidade dos cristãos, Santa Brígida é também conhecida por seu papel como pacificadora de conflitos entre os governantes de um medievo sangrento e cheio de intrigas palacianas.

Em 27 de outubro de 2010, o Papa Bento XVI dizia, em uma catequese sobre a mesma santa: “Brígida sabia bem que cada carisma é destinado a edificar a Igreja. Por isso mesmo, grande número de suas revelações era dirigido sob a forma de advertências, às vezes severas, aos crentes de seu tempo, incluídas as autoridades políticas e religiosas, para que elas vivessem de modo coerente a sua vida cristã”.

Na mesma época, Santa Catarina de Sena (1347-1380) trabalhou incansavelmente para trazer de volta a Roma o Papa Gregório XI, quando o papado estava sediado em Avinhão, França, e sofria forte influência política do Reino da França. Catarina também agiu de maneira fundamental para a restauração da paz nos violentos conflitos entre as cidades-estado da Itália.

Assim como ocorreu com Santa Brígida, as revelações místicas de Catarina, longe de elevá-la às nuvens angélicas, impeliram-na a agir concretamente no campo social e político. Além de intervir pessoalmente para evitar uma conflagração militar em Pisa, em 1375, ela viu-se impelida a escrever cartas para pessoas influentes, estimulando o diálogo e a compreensão mútua. Em volumosa correspondência com o Papa Gregório XI, Catarina cobrava a reforma do clero e da administração dos Estados Papais da época.

Dom Bosco mediador

Não se limita à Idade Média a presença de mulheres e homens da Igreja no campo da diplomacia. Mais recentemente, a extensa biografia de São João Bosco (1815-1888), escrita por um de seus primeiros colaboradores, o sacerdote Giovanni B. Lemoyne, mostra o importante papel do fundador dos Salesianos na pacificação dos conflitos entre a Santa Sé, cujas terras haviam sido desapropriadas, e o governo da Itália.

Em 1871, mais de 60 dioceses da Itália estavam vacantes, com 45 de seus bispos exilados pelo governo anticlerical e vários outros falecidos em idade avançada. Dezessete novos bispos indicados pela Santa Sé tiveram a entrada em suas dioceses proibida pelo Governo.

Após uma troca de cartas com o Papa Pio IX, Dom Bosco foi apresentado ao Governo como interlocutor papal. Seu trabalho ao lado do representante italiano, o cavalheiro Tonello, mostrou extrema habilidade em dividir as divergências em fatias menores e, pouco a pouco, apresentar soluções pontuais que pudessem ser acolhidas pelo Ministério Real e pelas hordas sectárias que odiavam a Igreja.

Testemunha da Paz

A expressão é do historiador Daniel-Rops, da Academia Francesa, ao definir a atuação da Santa Sé nos conflitos cruentos do Sec. XII. Escreve o autor: “O Papado assumiu o papel de testemunha da paz. Transcendente por definição – pelo menos em princípio… – a toda a querela política e a todo o partido, transcendente porque a origem de sua autoridade era divina e porque gozava de uma projeção universal, o Papado tinha, para desempenhar o papel de árbitro, a eminente qualidade de ser uno, de reunir numa só pessoa o julgamento e a decisão. Tudo o que se viu em relação aos poderes dos papas, aos seus direitos diretos e indiretos de intervir no mundo civil, e à doutrina das duas espadas, deve estar presente em nosso espírito, se quisermos compreender a psicologia dos homens que consideravam legítima a ação do Papado entre os beligerantes, bem como a dos pontífices que a exerciam. Mas não se tratou apenas da ação dos papas! Várias vezes, principalmente no caso de São Bernardo de Claraval e, mais tarde, no de São Luís, chegou-se a reconhecer um homem como autêntico árbitro político, simplesmente por ser um santo: o seu julgamento era considerado julgamento do próprio Todo-Poderoso”. (“História das Catedrais e das Cruzadas”, Ed. Quadrante, São Paulo, p. 311.)

Saltando do Séc. XII para o Séc. XX, vale lembrar que o Papa João Paulo II foi a única voz, clamando no deserto, que ousou condenar a agressão dos Estados Unidos contra o Iraque, na Guerra do Golfo, em março de 2003. Hoje, a Europa sitiada sofre as consequências desse erro histórico.

Comentários
  • Germano 2873 dias atrás

    É muito atual lembrar que São Francisco de Assis, que se dirigiu à Terra Santa na 5a Cruzada, esteve pessoalmente com o Sultão Al-Malik Al_Kamil no Cairo, chegando a ser preso e torturado antes de poder dizer ao Sultão que não concordava com os métodos violentos e sanguinários dos cruzados.

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