um menino crédulo – atemorizado pelo inferno da culpa –
acompanha a procissão de Sexta-feira Santa
em sua interiorana cidade.
Longa procissão, um rio de chamas,
o toque fúnebre da Banda da Polícia,
a expressão reflexiva dos fieis,
maioria proveniente da zona rural,
rostos marcados por intempéries,
ossos salientes nas faces queimadas.
Desvalidos a orar pelo Senhor da cruz descendido.
A criança segue em meio à turba
imaginando céus insossos,
mais real lhe parecendo o inferno
pelos pecadilhos cometidos
na sua rotineira imprevidência.
Mas há de seguir o bom caminho
através de uma vida de sacrifícios
dedicada ao Deus misericordioso,
ora levado em seu esquife sob o pálio
por solenes senhores da Confraria
ornados por mantos medievais.
Agora o féretro passa pela rua da casa
onde existe à frente um barranco.
O menino em meio ao povaréu ergue os olhos
e vê acima a linda moça da rua de baixo.
Estática qual uma madona em ascensão,
a clara tez contra o firmamento,
os cabelos negros em leve esvoaçar,
os grandes olhos escuros – é possível vê-los –
carregados, percebe, de melancolia.
Há de a ter visto algumas vezes – o menino –
a moça que engravidara sem se casar
e de quem falam nas esquinas, nos botecos,
assunto da maledicência ferina dos inquisidores
que apostam ser este o pai, ou aqueloutro.
Mas o garoto mal entrado na adolescência
na visão prenuncia sonhos românticos,
viagens a países de fantasias
onde espaços e perspectivas inusitadas
descobrem sacrários proibidos,
revelados em seus mais delicados recessos.
Qual um rio de lavas vulcânicas segue o cortejo;
sombras e luz dançam no barranco
onde a Madalena recolhida em seus mistérios
lá está, à margem dos fogos da fé,
isolada concebendo em pecado,
mais linda que a lua que esparge sua claridade
sobre a longa procissão dos penitentes.
Comentários
Meu amigo e colega de escola: Tenho certeza que todos vivemos coisas muito semelhantes. Eu em Aiuruoca…mas a diferença não existe.
Lembro Nietzsche: Temos a arte para que a verdade não nos destrua.
Belo texto.
Um grande abraço,
Gilberto.
Que adolescente nunca fantasiou na missa e na procissão, que era a única hora que as mulheres mais resguardadas e recatadas se desproviam de seus fundamentos e se expunham fora dos muros dos quintais, retirando o khimar, o hijab, o niqab, a al-amyra, a shayla, o chador e até a burka?