O rio da minha infância não é o Rio Grande. Nem o Aiuruoca, que nasce nos altos da Mantiqueira e morre no Grande. Não é o Pitangueiras, que cai no Aiuruoca, onde os piaus arrebentava minha linha. Não é o Rio Verde com seus extintos jacarés e a canoa de varejão.
O rio da minha infância nunca saiu da parede, sempre extático no quadro que minha prima Elza Scheid pintou em uma lâmina de madeira. Este, sim, é o rio da minha infância. As tabaranas do Pitangueiras e os dourados do São Francisco não significam nada se comparados aos peixes que sonhei pescar nesta curva de rio, à sombra da árvore.
Elza nem imagina que seu quadro de estudante, presenteado a minha mãe, acabaria sendo a imagem que ficaria eternamente gravada em meu coração de criança. Se soubesse, talvez tivesse acrescentado um menino de chapéu de palha e olhar pensativo, enfeitiçado pelo azul das águas mansas, meio esquecido do caniço que traz na mão direita.
O rio da minha infância é uma torrente silenciosa. Não imita o ressonar das águas do Pitangueiras em seus tempos de enchente. Não se ouve o coaxar de sapos à sua margem, nem um pio de passopreto na galhada. É um rio íntimo, uma correnteza interior, que se aprofunda sempre mais com o passar dos anos.
Para dizer a verdade, talvez seja impossível distinguir entre o rio e o menino. Como a criança não pôde entrar nas águas, as águas entraram no menino. Deve ser por isso que ele chora à toa e não deixa de ter um lenço no bolso esquerdo da calça…
Com tudo isso, os rios reais acabaram tornando-se imagens embaçadas do passado, enquanto o rio do quadro vai-se tornando sempre mais concreto, pois somente ele passou a fazer parte do menino, entrando por seus olhos e criando um lago profundo em sua mente.
No fundo do lago, um coral infantil entoa o hino negro spiritual:
“I’ve got peace like a river
I’ve got peace like a river
I’ve got a river in my soul…”
As crianças do coral se debruçam sobre as águas e vêem o reflexo de seus rostos. Todas elas têm o meu semblante, mas sua voz de prata não lembra em nada a voz rouca de minha velhice.
Ainda hei de mergulhar nesse rio… Quem sabe eu possa recuperar aquela voz que o tempo levou?.
Comentários
Elza Scheid está forte e saudavel, graças a Deus!
MUITO BOM!