Índia Diacuí

Publicado por Sebastião Verly 9 de março de 2015

india

Mais uma vez, peço licença para contar as minhas aventuras pela infância. Trata-se de minha infantil e ingênua paixão pela índia Diacuí. Em 1952, estava com meus 10 anos completos e uma energia de amor exuberante e, à força, contida.

Meu pai, do alto de sua septuagenária idade me chamou para mostrar a foto mais bonita que minha mente acredita que jamais viu em seus 73 anos, estampada a cores pela revista o Cruzeiro, cujo dono era o inescrupuloso Assis Chateaubriand.
Fiquei impressionado com a beleza da jovem e nem liguei muito para sua encantadora e esfuziante nudez. Era como seu nome traduzia: Flor dos Campos. Filha do cacique Avaguie Hípio dos Índios Kalapalos.

A índia era mesmo linda e sua foto a mais erótica das que conheci por muitos anos. Sentia mais erotismo pelos seus traços de beleza. Cabelos lisos e “negros como as noites que não tem luar”, brilho sedoso, jamais visto em minha vida. “Seus lábios de rosa” para mim sorriam com a “doce meiguice de seu .,. olhar”. Corpo escultural e pele tão macia e corada pelo sol que vazava da floresta tropical. Tudo nela era perfeito. Havia uma pequena mancha bem clara, um pouco abaixo do seio esquerdo. A estatura mediana a aproximava da minha altura que aos dez anos já era bem grandinho. Pureza e ingenuidade exalavam até mesmo em sua foto.

Não tinha a menor ideia da distância de mais de dois mil e quinhentos km de estrada desde minha casa até Vitória do Xingu, ponto mais próximo da Aldeia Kalapalos, que ficava em solos Mato-grossenses às margens do Rio Kuluene. Chegaria a Canarana onde descansaria nesta maratona de mais de 100 quilômetros.

Também não tinha menor ideia de onde ficava Aragarças, ponto de referência para minha longa viagem.

Tampouco sabia onde ficava, em Mato Grosso, a aldeia dos Kalapalos à qual pertencia Diacuí, a menina moça de meus sonhos. Alto Xingu para mim ainda me parecia mais uma pessoa de tamanho exagerado. Era lá que morava a herdeira de centenas de hectares de terra de boa qualidade. A terra lhe dava, bem como à sua tribo, o saudável alimento em todas as estações.

Era linda mesmo a garota. Apaixonei-me por ela. Mas como chegar até lá?

Vontade não me faltava. Já não dormia pensando encontrá-la em carne e osso em um corpo tão lindo quanto natural. Sem maquiagem. Sonho de criança precoce.

Não pensava em outra coisa. Minhas namoradinhas perderam de vez o posto. A Maria Ximango, a namorada da época, perdera seu lugar no meu sincero amor. Só amava Diacuí. Dia e noite. Diacuí, e somente ela, povoava meus sonhos, dormindo ou acordado.

Sabia que se chegasse ao Posto Indígena de Kuluene, da Fundação Brasil Central, me orientaria para chegar à Oca onde a moça vivia. Viajaria 1.900 quilômetros por campos e florestas pelo atalho para os mais de 2.500 quilômetros de estradas de terra. A aldeia dos Kalapalos ficava ali pertinho, apenas a 600 quilômetros daquele posto. Ainda era difícil para entende sobre os milhares de quilômetros.

Estava obcecado com a ideia e decidido a encontrá-la nem que para isso tive de abandonar meu pai, minha mãe e meus queridos irmãos. A namorada, como já expliquei, já abandonara desde que “conheci” Diacuí e a ela devotei todo meu amor. Não queria mais nada nesta vida. Havia algo de fascinante em sua foto e imaginava até como fetiche ser o primeiro homem branco a me casar com uma índia “selvagem”. Selvagem era o tratamento dado pela imprensa e por muita gente do chamado mundo civilizado.

Sonhava e me via dormindo numa rede feita de cipós bem no estilo de sua gente. Eu seria um trabalhador a mais em tanta terra produtiva. Acreditem, eu imaginava comendo e bebendo de acordo com o que aprendi que eram os costumes daquela gente. Tinha um conceito bem pessoal sobre o povo indígena. Na escola poucos e falava sobre aquela gente que já fora dona de 8.514.876,599 km², na chamada Terra de Vera Cruz, cruelmente expropriada pelos meus brancos ancestrais e muitos contemporâneos.

Se bem que numas das “histórias” de meu pai, ele costumava dizer que seu avô era um índio capturado por Dona Joaquina a sua trisavó, matriarca da família e proprietária de grande extensão de terra no Buriti de Estrada, mais tarde Pompéu, no centro-oeste mineiro. Eu sempre acreditei que tivesse sangue indígena em minhas veias e agora com esta paixonite aguda, parecia confirmar com a atração desvairada pela Diacuí, linda e fotogênica.

Não me contive. À noite, quando todos nós dormíamos, eu saltei de meu catre sobre o barulhento colchão recheado de palha de milho e saí, na ingênua missão de encontrar o meu grande amor.

Andei pelo grande quintal de nossa casa e só levava comigo todo o bolo de fubá que minha mãe prepara na véspera, para o café da manhã. Mamãe, quando soubesse do meu ousado plano de amor, na certa me perdoaria. Atravessei com os pés descalços, descalço era o comum naqueles anos, o que facilitou a travessia por dentro d’água do nosso córrego Mato Grosso, que naqueles tempos tinha águas cristalinas e límpidas. Ganhei, como diziam, o cerrado vizinho, que eram os pastos da família Sanfona e fui por ali afora. Não tinha pressa. O importante era alcançar o meu objetivo. No caminho, quando acabara o bolo, comi frutas. Já era um avanço para integrar-me à cultura indígena. Não era assim, que muitos dos companheiros de Diacuí matavam a fome no intervalo das refeições, raciocinava durante a “viagem”? As refeições na tribo eram suculentas, pois a completavam com alimentos bastante nutritivos e de boa sustança como a carne dos selvagens javalis, caçados nas redondezas.

Caminhava sem parar e meu corpo se sentia animado e confortável, bem disposto a caminhar milhares de quilômetros, distância que, como mencionei, eu ainda não conseguira assimilar o quão longe era.

Estava mesmo disposto a caminhar dias e dias até chegar ao Posto Kuluene, meu primeiro destino. Dali até aldeia seria levado em uma piroga de boa lembrança das escassas falas de Dona Eldira Campos, minha professora, no grupo escolar “Jacinto Campos”. (Assim, estre aspas, como me ensinaram).

Foram dias e dias de viagem e eu, em momento algum, pensara nos meus pais, amigos e parentes que deixei para trás. No Posto Kuluene não expus meus claramente planos. Disse algo que convencera a me ajudarem os funcionários do Posto e alguns índios que ali serviam.

Chegamos à aldeia da tribo Kalapalos ao cair da noite. As crianças, jovens e adultos já se recolhiam em suas ocas. Restava, apenas, um senhor de aparentes 60 anos, que, no dia seguinte, vim a saber que o velho tinha bem mais de oitenta anos, conforme me disse um homem branco que ali permanecia bastante bem quisto dos Kalapalos.

O bom velhinho era um pajé de tantas eras. Conseguia fazer entender sua própria língua e confirmou que ali morava a tal Índia, especialmente, com mais vibração quando lhe falei da pequena mancha clara que trazia sobre o seio esquerdo. Sentado numa espessa tora de madeira, um tronco de Jacarandá, me traduziu e traduzia suas palavras ditas lentamente. O velho Pajé não tinha pressa.

Bateu na tora de madeira seu cachimbo feito de sabugo de milho bem curtido, como era o do Zé Barbado, velho bem conhecido em minha cidade e, logo a seguir começou a enchê-lo de novo com uma erva, que encalcava com o dedo indicador. O desconhecido cheiro daquela erva impregnou minha mente e o guardo para sempre. Era um cheiro momentaneamente alucinante e logo em seguida despertava um ânimo fora do comum, que senti pela primeira vez na vida. (Hoje sinto este mesmo cheiro aqui perto de casa e haja lembranças e saudade da minha visita aos Kalapalos.)

“A noite é uma criança”, disse o velho a me convencer a esperar. Que voz clara tranquila e serena!

Estava disposto a esperar pelo resto de minha vida e outras vidas, se tivesse, esperaria, se não fosse “para tão grande amor tão curta vida”, entendendo Camões.

O dia clareava, os galos cantavam nas imediações da aldeia, com o mesmo canto dos galos de minha casa, e eu permanecia ali sentado com o velho pajé que raramente tirava uma soneca, salvo a siesta durante o dia na frondosa sombra de um jacarandá florido ao lado de uma moita do saboroso açaí, me esclareceu.

Minha mãe já havia se levantado e preparava o café forte como pedia meu pai.

Saltei da cama a tempo de certificar que bolo de fubá estava intacto em cima do fogão para evitar as formigas “doceiras” que apropriaram de nossa cozinha.

Comentários
  • verly 3547 dias atrás

    Fiquei feliz e me li como se fora de outro autor. Muito obrigado Editor.
    []s do Tião

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