A morte do pianíssimo

Publicado por Antonio Carlos Santini 19 de fevereiro de 2015

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– Então ele morreu?
– Morreu…
– Pena! Foi hoje?
– Não. Veio morrendo aos poucos desde os anos 60… Até que resistiu bastante… A última vez que apareceu em público foi numa interpretação de “Manhã de Carnaval”, do Luiz Bonfá e do Antonio Maria…
– “Manhã, tão bonita manhã…” Maravilha!
– Que beleza!
– Foi morte natural?
– Não…
– Quem foi o assassino?
– Bem, não se trata de um ataque individual…
– Como assim?
– É uma dessas situações em que não se pode atribuir o crime a um indivíduo isolado…
– Uma espécie de linchamento?
– Exato. Muita gente participou.
– Que tipo de gente?
– Uma verdadeira multidão, com destaque para os bateristas.
– Bateristas?! Que estranho!
– Pois, é. Com aquela bateria de pratos e tambores, o nível de ruído tomou conta da paisagem sonora. O pianíssimo não podia mesmo sobreviver. Antes, a dinâmica musical era muito rica, desde o pianíssimo de uma ária pastoril até o fortíssimo de um Hallelujah. Agora, sem o falecido, virou tudo uma pasta sonora.
– Houve cúmplices?
– Claro! Trombonistas, percussionistas de várias classes… Mas essa história de amplificar o som foi a pá de cal…
– Mas, um momento! Se não me engano, até um músico erudito como o russo Tchaikovski abriu espaços para uns tiros de canhão na Ouverture 1812…
– Tem razão. Mas o próprio compositor se arrependeu. Ele mesmo reconheceu que sua peça era muito barulhenta…
– Me diga uma coisa: com que intenção mataram o pianíssimo? Algum motivo especial?
– Pelo que me consta, ele foi eliminado em nome da comunicação…
– É mesmo?!
– O pessoal da música faz questão de ser ouvido o mais longe possível. Por isso exageram nos decibéis.
– Ah! Então o coitado morreu de…
– Volume! Morreu de volume. Ninguém está mais preocupado com a poesia, com o refinamento melódico, com as modulações tonais. O que importa é chegar longe.
– Pobre do pianíssimo… Tão delicado!
– Pois, é. Coisas da eletrônica…

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