Alegria de Pobre

Publicado por Edmeia Faria 14 de janeiro de 2014

Alegria de pobre dura pouco. 17 horas. Segundo dia, e a faxineira já me deu o bolo. Não veio nem mandou recado. Admirável mundo Novo!

Cada um pra si, Deus pra todos. Diz a sabedoria popular.  “Levanta-te e anda!” Ordena Jesus. Ainda tem um resto de tarde. E a noite está por vir. Mãos à obra! Aspirar, limpar, lavar… Primeiro a obrigação, depois a devoção. Ensina Vovó Juvenita. A crônica vem depois.

A vida é dura pra quem é mole, dizia Dona Inês, minha mãe. 19 horas. Casa limpa. Cama trocada. Já com a roupa de dormir, pra ganhar tempo e dinheiro: Jogo de lençol Casa & Conforto by Buddemeyer, 200 fios, 100% algodão. No Shoptime, 12 vezes sem juros no cartão. Estampa floral azul e branco que hoje eu quero paz de criança dormindo/ e abandono de flores se abrindo. Ahhh Dolores DuranPostar foto pra gente ver? Ah ah ah. Minha câmera, uma Kodak, só tira foto de papel; tem que esperar acabar o filme. E revelar. E escanear… Tá rindo? Porque você não é professor. Aposentado. Vai ficando obsoleto. Meu salário? Uma vergonha nacional. Você que é brasileiro, brasileira sabe. Contar aqui, nem morta! Roupa suja se lava em casa, ensinam nossos antepassados. Você sabe Internet como é. Caiu na rede, caiu no mundo. E, vou confessar: eu amo este meu país. E fico envergonhada. Ser homem é precisamente ser responsável. É experimentar vergonha em face de uma miséria que não parece depender de si, professa Saint-Éxupéry.

Agora vou pôr a roupa na máquina e dar uma deitadinha, descansar a coluna. Saindo de uma crise aguda. É melhor prevenir que remediar. Ahn!?  19h30, segunda, 25. Concerto no Conservatório da UFMG: Árias e Canções com a soprano Nívea Raf e o pianista Wagner Sander. Im-per-dí-vel!

Bora lá, para usar a linguagem do facebook. Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje, diz o popular. E um dia sei que estarei mudo:/ − mais nada. Ah, Cecília, Cecília… Se esse meu dia retardar, antes mesmo de estar muda, sei que estarei surda.

Falta meia hora. Tomo um banho de gato; espalho um pouco de mineral powder foundation nas faces; estreio o batom cremoso Berry Kiss da Mary Key; enfio na primeira roupa e sapato ao alcance das mãos. E dos pés (risos). Pego a bolsa da Arezzo e… 19h22. Inda há tempo. É ali mesmo. Num minutinho estou lá. Peraí. O aparelho auditivo. Como é que eu vou ouvir árias e canções? Em casa, costumo ficar sem ele algumas horas. É recomendável: economiza bateria, evita infecção e estresse. Aproveito e guardo na caixinha, na hora que não preciso ouvir, ou quando é melhor não ouvir. Neste caso, descanso o aparelho e me poupo, quando o telejornal e programas afins insistem na reconstituição detalhada de crimes hediondos sem castigo, dão voz a bandidos e assassinos, enfatizando atos e táticas, durante pronunciamentos e outros programas de hipnose e lavagem cerebral. Aí, tiro o aparelho auditivo. E os óculos. Privilégio da “Terceira Idade”.

Pronto. Estou equipada. Saio, desço a rua, atravesso e entro pelos fundos. Não preciso dobrar a esquina e entrar pela frente na Avenida Afonso Pena, 1534. Passo por dentro. O pessoal está acostumado. Já sou familiar. Pego a programação, subo as escadas, me acomodo na segunda cadeira da segunda fila. Desligo o celular.

Os artistas entram no palco. Fauré abre o espetáculo com Clair de Lune. Logo vem Debussy com as “Quatre Chansons de Jeunesse”. Seguem Handel, Mozart, Délibes. E fecha com Offenbach: Les Oiseaux dans la Charmille, Os Contos de Hoffmann. Até o autor, projetado no painel ao lado, prende a respiração e se abre em sorriso com a interpretação de sua obra. O auditório aplaude de pé. Saio com a alma leve, plena de música, des oiseaux et des fleurs.

De volta, me esgueiro entre mesas e cadeiras no passeio com o pessoal bebendo sua cervejinha. Um Gato, desses da “Melhor Idade”, camisa azul, um pouco mais clara que a minha, identificado talvez pelos tons do azul, ou tomado de assalto por um desses lances de memória da juventude, me atira um olhar à queima-roupa. E arrisca um bem-humorado “Boa noite!” comigo Já de costas. Viro para trás, sorrio com o batom cremoso Berry Kiss e prossigo levando o meu sorriso e as doces lembranças do flerte adolescente na Avenida Dona Joaquina em Pompéu e no Jardim de Pitangui. As moças fazendo “avenida”, se abrindo em sorriso aos rapazes parados, de pé, ao longo do passeio com Cupido à espreita, e o alto-falante espalhando música no ar: Alô, Cupido, pra longe de mim!

Agora em casa, tiro a roupa da máquina e ponho no varal. Faço um lanche, o da faxineira que não veio. Bem dizem os nossos avós: Não há mal que não traga um bem. Com o dinheiro contadinho para a minha ajudante…

─…Imagina… Que paguei o ingresso para o concerto?! Entrada gratuita! Vou comprar outro batom da Mary Key e o hidratante redutor de linhas de expressão, que faltou no fim do meu salário.

Finalmente a crônica.

Alegria de Pobre.

Comentários
  • Antonio Ângelo 3971 dias atrás

    Como Rubem Braga, Edmeia traz a poesia do cotidiano para a crônica, dando-nos uma nova interpretação a ocorrências até certo ponto banais.

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